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21/02/2020

Sonhos Perdidos

©Prawny

       Trazia consigo os sonhos mais íntimos de uma vida inteira. Aqueles que sempre guardou nos recônditos enlaces da sua alma, sem nunca os mostrar, sem sequer ter coragem para os sonhar. Porque a vida, sempre a vida, lhe dizia que não era lícito o sonho. Não podia, não devia ultrapassar os limites impostos. Quais limites, inventados por quem e com que propósito? Isso, ela não sabia.
Ela só sabia que a existência não lhe fazia sentido sem os seus truques de magia, ainda que apenas os realizasse para sua própria satisfação, nas esquinas e vãos de escada por onde se movia. Ouvia, às vezes, chamarem-lhe feiticeira. Bela feiticeira, chamavam-lhe os homens que secretamente a espionavam, e, com toda a certeza, de tais visões alimentavam os seus delírios. Mas isso era dantes, dantes quando era jovem e bela: a bela feiticeira!
Agora, era só a bruxa que deambulava pelas ruas da cidade, numa excentricidade muda que já a ninguém incomodava. Agora já podia ultrapassar os limites, já era lícito o sonho…, mas faltavam-lhe as forças. Continuaria a arrastar os sonhos, pelas ruelas e becos sem saída, que ecoavam os seus lamentos.




23/05/2018

O Sonho do João - Parte IV

Pintura de Nívea Lopes Prado


Viu um mundo desconhecido.
Tão diferente e tão igual, na beleza
e nas sensações que experimentou.
Sentia-se bastante mais enriquecido,
quando voltou para  a terra
e desceu da estrela, com total destreza.
Despediu-se da companheira
e no momento, houve algo em que pensou.
Algo que o fez sentir tristeza.
Em algumas zonas do planeta, viu guerra.




Não era bonito de se ver,
imagens de tanto sofrimento.
Aqueles senhores que fazem a guerra
não teriam nenhum sentimento?
O João pensou que, com certeza,
haveria uma maneira de resolver
os conflitos dessa gente grande.
Trocar por esperança, a avareza
do mal que se expande
e entrega-la às crianças a crescer.  




21/05/2018

O Sonho do João - Parte III

Quadro do pintor espanhol Pere Borrell del Caso

Mesmo a medo, ele avançou.
Não era pessoa de desistir
e o sonho era tão forte,
que lhe deu a força para subir.
De uma só vez, escalou a altura.
Percebeu como a estrela era macia
e deitou-se de barriga para baixo.
Apoiado nos cotovelos, viu noite escura
e a terra coberta de maresia,
àquela hora da brisa do norte.




Era uma visão limitada.
Percebeu, quando iniciou a subida
e o universo começou a crescer.
Ficava mais pequeno, na verdade,
mas via cada vez mais zonas,
 que sempre sonhou conhecer.
O planeta onde morava,
que todos lhe diziam ser azul,
apenas o via ficar brilhante
à medida que deslizava para sul.




E quando a estrela descia em altura,
via tudo muito mais definido.
 No mundo, as diferenças surgiam
a cada mudança de posição.
Quando passou no hemisfério norte,
sentiu frio e muita tremura,
enquanto no sul, sentiu o pleno Verão.
No oriente, encontrava dia,
ao mesmo tempo que, indo a ocidente,
passeava na escura noite.




18/05/2018

O Sonho do João - Parte II


Pintura de Cesare Pergola

Levantou-se e foi para a janela.
Pôs-se a olhar para o céu,  
com a expressão de quem sonha.
Viu uma centelha luminosa,
que avançava no escuro de breu.
- Mas que imagem tão bela!
Exclamou, com voz melodiosa.
Não acreditava em tão bela visão.
Era uma sorte tamanha,
encontrar ali a sua solução.



Aproximando-se pouco a pouco,
a centelha transformou-se em estrela.
- Não, não posso estar louco…
- baixinho, o João murmurou.
De olhos arregalados, olhou para ela.
Viu-a pôr-se a jeito para ele subir,
mas ele assustou-se e recuou.
- Com certeza, estou a dormir,
as estrelas não entendem a gente,
nem sabem o que a gente sente.


Ainda assim, a estrela ficou ali,
como que a chama-lo.
Não se lhe ouvia a voz,  
era apenas um luminoso clarão,
mas no coração, o João sentia
que devia confiar e ir.
Como que a encoraja-lo,
algo dentro de si lhe dizia:
- a estrela está aqui só por ti, 
para te levar pelo céu a passear.  



17/05/2018

O Sonho do João - Parte I

Pintura de Marcela Oliveira de Faria

O João tinha um sonho,
um sonho muito audaz.
Sonhava ver o mundo
lá de cima de uma estrela,
mas não sabia se era capaz.
Às vezes, até conseguia vê-la,
por uma fracção de segundo.  
E então, com o seu ar risonho,
imaginava-se a descolar.
Sobre ela, subir aos céus e viajar.





Mas tudo não passava
de um delírio da imaginação.
Logo tornava a pôr os pés no chão
e de cabeça baixa, caminhava
por todo o seu jardim
sem acreditar que não voava.
Ia do princípio ao fim,
à espera de encontrar a solução.
Quem procura sempre acha,
desistir do sonho é que não.





Até que um dia, pela noite,
já deitado na sua cama,
contava carneiros para adormecer.
O sono tardava em chegar,
não sabia o que havia de fazer.
Os pensamentos não paravam,
atingiam-no como açoites,
ou como sentimento que chama,
com a urgência de encontrar 




06/05/2018

A Partilha

Pintura: As Irmãs de Renoir

Elas eram grandes amigas. Partilhavam as brincadeiras, os segredos e as confidências de criança… e partilhavam também o caminho para a escola. Naquele tempo, lá no longínquo início dos anos cinquenta do século XX, as escolas ficavam longe, para as meninas e meninos que moravam no campo. Por vezes, percorriam diariamente longas distâncias a pé. Aqueles que tinham o privilégio de poder ir à escola. Quantas vezes, ou porque os pais precisavam do trabalho deles, ou porque não estavam despertos para os benefícios da escolaridade, simplesmente não iam.
Elas as duas, uma porque os pais podiam prescindir do seu trabalho, outra porque os pais nem trabalho tinham para a ocupar, iam. Todos os dias de manhã, com a bolsa dos livros, cadernos e lápis às costas e a lancheira na mão, andavam os quilómetros que as separavam de um futuro mais iluminado pelo saber ler e escrever.
Na lancheira levavam o almoço, e era ai que estava o que as distanciava. Mas que mais que isso as aproximava. A uma, a mãe procurava sempre os melhores “petiscos” para lhe enviar merendas variadas, à outra a mãe só tinha cebola frita com pão para lhe enviar. Mas, porque eram grandes amigas, a que levava merendas variadas sempre as partilhava com a amiga.




Há mães que nos inspiram para a uma certa maneira de ser, apenas com as suas histórias de vida.  




30/12/2016

Um Conto de Ano Novo



Àquela hora, já todos andavam num autêntico corrupio. Embora ainda faltassem trinta minutos, ninguém queria correr o risco de chegar ao derradeiro segundo e lhe faltar uma passa para terminar a contagem decrescente. Por isso, os ditos frutos secos que ao que parece naquela noite concediam desejos eram contados e recontados vezes sem conta. Mesmo alguém mais distraído que não ligava a essas coisas e achava que ainda tinha tempo de apanhar uma taça de espumante à última da hora acabava por entrar na azáfama, incitado pelo vocalista do conjunto contratado para animar a festa.
No fundo, todos sabiam que não passava de um ritual, mas era bom acreditar. Era bom crer que a data era um ponto de viragem, que no dia seguinte tudo estaria diferente e que tudo de mau que tinha acontecido até ali desapareceria. Pelo menos, durante os próximos trezentos e sessenta e cinco dias. Dali a um ano, na mesma data e à mesma hora, repetiriam os desejos.
Entre uma dança e outra, o rapaz do conjunto lá ia anunciando os minutos que faltavam. A movimentação tornava-se cada vez mais intensa e a música parou. Deixando cada um procurar o lugar junto de quem queria fazer aquela travessia, ou mesmo dando tempo aos mais atrasados para se munirem das devidas passas e espumante. Até que recomeçou uma melodia tranquila, contrastante com os estados de espírito.  
E o porta-voz do conjunto continuou a anunciar quanto tempo faltava. Cinco minutos, quatro, três, dois… quando faltava apenas um minuto, todos se calaram. Como se se pusessem em sentido para receber o novo tempo que estava a chegar.
Faltavam só já dez segundos e a contagem começou. A música era apenas uma batida ritmada que se ouvia de uma forma crescente, enquanto os números inversamente proporcionais eram gritados por entre os desejos implorados. Até que só já faltava um. Faltava apenas um segundo para novamente começar a contagem crescente. Mas esse último, ninguém o contou. Ouviu-se um estrondo seguido de um grito: - Parem!
Começou uma correria caótica e instintiva, sem destino. A música calou-se. Assim como se calou a multidão, depois dos gritos de desespero. O silêncio tornou-se ensurdecedor. Até que, aos poucos começaram a emergir sussurros. Cada um aventando hipóteses, tentando explicar a ocorrência. Tiro, bomba… ou seria algum outro engenho mais complicado e infinitamente mais maléfico?
Uma figura franzina apareceu de um canto. Atravessou o espaço tranquilamente, assobiando para o ar.
Era apenas um velho que não queria passar o ano.



20/12/2016

Um Conto de Natal



Na mesa havia alguns fritos de Natal. Poucos, que o dinheiro não dava para muita fartura. Ainda assim, fazia-se o que era quase impossível para manter a mesa posta naquela noite. Ninguém lhe tocava, para que não ficasse despida. Nem as crianças. Diziam-lhe que era para o menino Jesus, quando de madrugada descesse pela chaminé. Na verdade, era porque apenas havia uma filhó para cada um, feitas com a farinha que tinha sido roubada ao pão. Seriam o desjejum do dia seguinte.
Para aquela noite tinham a ceia que a mãe conseguira, desviando um pouco, muito pouco, do que o marido lhe dava todos os meses para a casa. Comprara uma posta de bacalhau e completara a panela com couves e batatas do pedaço de terra que o vizinho lhe tinha emprestado para semear.
Foi a avó quem comandou o ritual. Era sempre ela. Mesmo já nem sequer andando pelo próprio pé, devido às dores que lhe tinham deformado os ossos, era ela a autoridade máxima. Começou por agradecer a uma qualquer entidade divina a refeição que iam degustar. Os miúdos olhavam-na com uma certa desconfiança. Não entendiam porque tinham de agradecer, se tinham tão pouco. Com certeza mereciam muito mais. Deviam era protestar, isso sim. Sabiam que havia quem tivesse tanto a sobrar.
No entanto, esqueceram todos os protestos assim que começaram a comer. A mãe tinha feito um milagre. Aquela ceia tinha um sabor fabuloso. Sabia a amor, disse quando lhe perguntaram o que tinha posto na panela. Comeram até se fartarem.
E então, estava na hora de ir à missa. Era um hábito que todos gostavam, pois logo a seguir toda a gente da aldeia se juntava à volta da fogueira a cantar canções ao menino. Todos ajudaram a avó a sentar-se na cadeira onde o pai tinha improvisado umas rodas. Algo que faziam com naturalidade, pois era a lei da vida. A avó precisava que a carregassem, eles carregavam-na como ela já tinha feito com eles. E estavam prontos.
Mas antes de saírem, a avó pediu que lhe alcançassem o saco que estava guardado atrás da porta. Era um saco grande e todos ficaram parados com os olhos muito abertos a olhar para ele. Não entendiam o que é que a avó queria daquele grande saco. Muito serena, como se aquele fosse um momento sagrado, ela começou a tirar casacos lá de dentro. Um para cada um, havia para todos. Tinham sido feitos com lã de camisolas velhas que ela tinha desmanchado.
Agora entendiam as horas e horas que ela passava agarrada ao seu tricot.



15/05/2013

O Monstro do Amor - Ocultos Buracos


A colectânea “Ocultos Buracos” é uma obra da Pastelaria Studios Editora  onde os vários autores, dando largas à imaginação, escreveram Histórias Horríveis ou Impossíveis. Esta é a minha história impossível nesta colectânea.


O Monstro Do Amor

O tempo passara rápido, tão rápido que nem dei pelas primeiras estrelas se erguerem no céu. Deambulando por ali e tentando afastar a melancolia que me preenchia a alma sentei-me no chão macio de capim quase ressequido pelo calor da planície e fiquei a observar os últimos raios de sol daquele dia, que fora mais um daqueles em que as estrelas se incendeiam antes de chegarem à noite. E num ápice, o sol já se recolhera no horizonte do seu descanso nocturno, deixando-as apenas a elas, as estrelas que eu via erguerem-se uma a uma no céu de veludo que brevemente seria negro...

- Não tarda e a lua aparecerá bem lá no alto qual rainha dos céus.

Sem que eu tivesse tempo nem mesmo para me refazer do susto e já aquela criatura se sentava ao meu lado fazendo-me sentir tal arrepio pelo corpo acima que a minha única reacção foi apertar-me com os meus próprios braços, abraçando-me a mim mesma. Não o tinha sentido aproximar-se, estava talvez demasiado concentrada na minha imensurável melancolia mas a verdade é que aquele ser de aparência esquisita veio em pezinhos de lã.

- A lua, a linda rainha dos céus está quase a chegar. – Repetiu, fazendo com que me virasse na sua direcção e como que com um íman os seus olhos atraíssem os meus, ao contrário do que tinha visto antes, que me parecera um monstro de um filme de terror, via agora um olhar meigo que me envolvia com toda a ternura do mundo. Era magnético aquele olhar castanho de mel, adoçava-me por completo o espírito e a alma. A melancolia que me levara para ali desaparecia completamente e a voz saiu-me num sussurro.

- Sim, a lua…

- Hoje é lua cheia e eu sei que tu adoras a lua cheia.

Sim, é verdade que nutro um certo fascínio pelas noites de lua cheia. A noite da planície iluminada, apenas, pelo brilho da lua cheia assemelha-se ao mais belo quadro que algum pintor jamais pintou. Mas como é que alguém que eu nunca vira sabia deste meu fascínio? A não ser que… não, não podia ser. A única pessoa que me provocava aquelas sensações era alguém por quem eu me vinha apaixonando e que as minhas amigas apelidavam de monstro, mas ele não era monstro, era tão bonito no seu porte de homem sensual, o rapaz mais bonito do liceu. Como é que alguém podia dizer que aquele rapaz de olhos castanhos de mel e corpo musculado, na medida certa, era um monstro?

Definitivamente não era ele. Mas sentia-me tão bem naquele abraço em que o seu olhar me envolvia. Aproximei-me mais e pude ver os lábios que emolduravam um sorriso estampado numa boca perfeita. Senti vontade de o beijar. Possuída por um impulso momentâneo cerrei as pálpebras e fiquei de boca entreaberta para saborear o beijo, senti-o aproximar-se, o hálito macio e os lábios quase colados aos meus disseram-me que o seu olhar passava de ternurento a apaixonado. O beijo foi delicado mas intenso, exigente e de total entrega. E eu, eu abandonei-me por completo ao deleite que aquela boca espalhava por todo o meu corpo.

Devagar e enquanto, com o olhar me aprisionava a alma, vestiu o meu corpo de caricias, mãos de seda que me faziam alcançar as nuvens e, na noite, choveu. Choveu uma chuva de prata que o fez inundar-se de mim, quando para me proteger, poisou o seu corpo sobre o meu. E juntos olhámos o céu. Nada mais existiu para além dos corpos sintonizados com a natureza… e a lua. A lua que desde que subira sobre o manto de veludo negro se tornara nossa cúmplice. Cantos de anjos se entoaram nos céus, desafiando o meu Deus, o meu Deus grego do amor, a entoar com eles a paixão. E assim se compuseram as mais belas melodias de amor.

Depois, depois a dança de uma coreografia arrojada sob o olhar cúmplice da lua, até aos últimos passos que explodiram em êxtases de corpos e almas fundidos num só.

E finalmente, paz! A paz dos espíritos que num mundo de total serenidade se pertencem.

Senti a felicidade em toda a sua plenitude e quase jurava que ele também. Entre promessas e beijos adormecemos… até que os primeiros raios de sol anunciaram a alvorada.

- Tu não és um monstro… - Soltaram-se-me da boca, as palavras, antes mesmo que o meu raciocínio, ainda adormecido, as pudesse processar.

-…?!

- Ontem à noite estavas diferente.

- Diferente, como?

-Eras um monstro… um monstro amoroso.

- O teu monstro do amor?

- Sim, o meu monstro amado!