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21/02/2020

Sonhos Perdidos

©Prawny

       Trazia consigo os sonhos mais íntimos de uma vida inteira. Aqueles que sempre guardou nos recônditos enlaces da sua alma, sem nunca os mostrar, sem sequer ter coragem para os sonhar. Porque a vida, sempre a vida, lhe dizia que não era lícito o sonho. Não podia, não devia ultrapassar os limites impostos. Quais limites, inventados por quem e com que propósito? Isso, ela não sabia.
Ela só sabia que a existência não lhe fazia sentido sem os seus truques de magia, ainda que apenas os realizasse para sua própria satisfação, nas esquinas e vãos de escada por onde se movia. Ouvia, às vezes, chamarem-lhe feiticeira. Bela feiticeira, chamavam-lhe os homens que secretamente a espionavam, e, com toda a certeza, de tais visões alimentavam os seus delírios. Mas isso era dantes, dantes quando era jovem e bela: a bela feiticeira!
Agora, era só a bruxa que deambulava pelas ruas da cidade, numa excentricidade muda que já a ninguém incomodava. Agora já podia ultrapassar os limites, já era lícito o sonho…, mas faltavam-lhe as forças. Continuaria a arrastar os sonhos, pelas ruelas e becos sem saída, que ecoavam os seus lamentos.




02/06/2013

Histórias Sobre Fotografias: Gaivota Tridáctila

 
Atenta, ela assistia ao zarpar dos navios. A gaivota tridáctila, de corpo miúdo e voo ligeiro, que espalhava ao vento as mensagens do mundo. Notava-se-lhe um certo ar de tristeza, havia dias que estava em terra sem que, no mar, houvesse sinais de tempestade. Mais um navio se afastava, lá se ia equilibrando na crista da onda. Outra gaivota sobrevoava a embarcação, da popa à proa, ia e volteava, num vaivém de voos tangenciais. Vento frio, gélido no rebentar das ondas, e o grito da companheira. Lembrava-se de tudo menos do momento em que ela se havia prendido nas amarras do navio. Se o tempo é um limador de arestas, certamente, um dia iria recordar aquele quadro com a melodia da saudade.
Luz, textura, cor. Escuridão. O vento sopra forte e o navio adentra-se na tempestade. Enraivecem os gigantes dos mares. As ondas embatem no farol e intensifica-se o ruido que vem do quinto dos infernos, onde os demónios lutam pelo domínio das águas e dos ares. E das gaivotas que voam livres, espalhando as mensagens do mundo. Quantas tinham sido as tormentas que, juntas, haviam passado na fresta de uma falésia escarpada? Tantas, tantas que não daria para as contar. E os voos rasantes, na praia, sob as estrelas e o luar. Havia mais uma estrela no mar.
Amanhã, empreenderia novos voos solitários. Talvez em bandos, quem sabe!... Amanhã voltaria a voar. Porque quem volta tem sempre uma história para contar.


11/05/2013

Histórias Sobre Fotografias: Foz do Douro - Porto


Não tinha hora certa, era quando o coração se lhe apertava com saudades do mar. Calçava as galochas, vestia o velho casaco de marinheiro e descia, ligeiro, até à foz. Ficava ali por tempo indeterminado, nem ele mesmo sabia se eram horas ou dias, que duravam os êxtases que o prendiam entre o estuário do rio e a longitude do mar. A cana de pesca era um mero acessório, jamais levara um peixe para casa. Quando algum, por descuido, mordia o anzol, oferecia-o às gaivotas que em troca lhe contavam histórias de outros mares.

Desde sempre, que era esse o fascínio que nutria pelo mar. O mar tocava outras terras, outros continentes, e conhecia outras gentes. O mar trazia notícias de mundos diferentes. Mundos que ele sempre sonhara conquistar. Nunca tinha ido para lá da praia, nem mesmo conhecia, por dentro, um grande navio, mas gostava de navegar. Oh, se gostava! Ali, mesmo, naquele cantinho da foz, quantas viagens de circum-navegação não tinha já feito? Nem lhes sabia a conta. Era só embarcar num sonho e o mar abria-lhe caminho para a aventura, levava-o por ventos e tempestades, ondas calmas ou revoltas… até ao infinito das marés.

28/03/2013

Histórias Sobre Fotografias: Casablanca

 
 
Pela enésima vez surpreendia a avó com os olhos pregados ao ecrã, completamente absorta, embrenhada nas sensações daquela trama a preto e branco. Casablanca, era o nome do filme. Um best-seller do século passado que a ela não dizia coisa nenhuma. Ternamente a avó estendeu-lhe a mão fazendo-a aconchegar-se no seu regaço. Tinha aproximadamente a sua idade quando tudo acontecera. Uma grande parte da alta sociedade espanhola rumava ao norte de Africa, fugindo aos resquícios de uma guerra civil que não se compadecia com ninguém. Nem mesmo com as famílias de quem se movia nos altos meandros da política. Ou, especialmente, com elas. E ela, recém-casada com um dos principais líderes da revolução, tornara-se um alvo fácil.

Por circunstâncias, ou por um qualquer contratempo, foi parar a Casablanca, onde já se estabelecia uma grande percentagem da elite europeia. Sentindo os indícios de uma guerra que não tardaria em começar, os senhores do poder punham os seus entes queridos a salvo. Mas eram principalmente as madames francesas que ali se encontravam, as mulheres e filhos dos magnatas espanhóis estabeleciam-se em territórios periféricos, sensivelmente mais a norte. Desde que, há algumas décadas atrás, os dois estados tinham decidido partilhar a supremacia sobre aquele reino de sultões que Casablanca era um protetorado francês.

E assim, ela se viu sozinha no meio de desconhecidos. Entre as mademoiselles francesas, que se exibiam em clubes privados ostentando luxo e riqueza, e a população local, onde se denotava uma certa pobreza, mas também, a autenticidade, o tradicionalismo, alguma ingenuidade e muito encantamento. Deambulava pelo universo das emoções e deixava que o corpo se embebesse em visões, cheiros e sabores, naquela terra onde as mulheres escondiam o corpo até ao rosto. Entre a cidade cosmopolita e os bairros tradicionais de mercados ao ar livre. Não passaram muitos dias até que se encontrasse com Mahamed, o vendedor de fruta que lhe desvendou o sentir, mesmo através do véu que passou a usar para melhor se entrosar com a população local.

No início eram apenas os olhares, num diálogo intenso que revelava mais que uma conversa de palavras, os dois, frente a frente, um de cada lado da banca de venda. Absorviam sofregamente os aromas dos frutos tropicais. Mas a inevitabilidade daquela paixão não permitiu que se mantivessem tão longe quanto a distância da largura da banca de frutas, e os prelúdios na suite de hotel, que o marido luxuosamente pagava, não se fizeram esperar. E os passeios, escondidos, pelos monumentos e zonas históricas, durante o dia, precederam noites escaldantes onde se desnudava de todos os véus. Até que um dia a guerra acabou, e o célebre senhor da política, agora instalado no poder, a resgatou para o seu papel de esposa. Acompanhante de luxo nas altas reuniões político-sociais.

Avó, a minha mãe?... A tua mãe nasceu alguns anos mais tarde. E a indústria cinematográfica fez Ingrid Bergman e Humphrey Bogart criarem estes dois monstros sagrados, que alimentam as minhas recordações.

22/03/2013

Histórias Sobre Fotografias: Rostos Que Marcam II

 
 
Com um punhado de areia ele plantou um jardim. Conduziu a assistência em viagens imaginárias por terras que nunca haviam percorrido. Pelo caminho das histórias viajaram com o povo Tuareg, nómadas berberes que vivem no deserto do sahara. Contou lendas e mitos do seu povo. Senhores, príncipes e princesas. Que da cultura tuareg não há muita escrita, são tudo contos ancestrais de tradição oral. Ele próprio dizia já ter nascido contador de histórias. Sou um filho de Ulisses, Sinbad, Sherazade, e dos cantores de blues deste planeta. Nos olhos um sorriso maroto… toda a sabedoria das suas gentes se transporta na algibeira de um contador de histórias, amarrada pelas notas de um alaúde.

De onde eu venho os trovadores nascem cedo. Sou da terra dos homens livres, nasci no meio do deserto, num oásis na terra de lugar nenhum. Um artista nasce da sorte. Além do dom é preciso ter sorte, e eu tive a sorte de nascer filho de um trovador berbere. E de uma poetisa. A minha mãe era poetisa e carregava-me numa trouxa às costas enquanto recitava os poemas da nossa gente. Assim me fiz contador de histórias. E músico. Também sou músico, sou percussionista e toco vários instrumentos. Também tive a sorte de conviver com griots, os mestres das artes e da palavra. Com eles aprendi muitos mitos e epopeias do meu povo, que cultivo até hoje. Além de dom e sorte, o contador de histórias precisa ter memória.

Era um contador de histórias marroquino, radicado no mundo, a contar histórias do seu país.


21/02/2013

Histórias Sobre Fotografias: Vaguear Pela Sombra

 
Vagueiam por toda a parte. Ora vagarosas, ora apressadas, umas levando a vida passo a passo, outras correndo atrás dela. São as sombras que habitam a cidade e a levam para a frente ou para traz, consoante as marés. No mar de gente que todos os dias inunda as ruas e avenidas, as praças e ruelas, ou mesmo os becos sem saída, há sombras que se movem transportando a verdadeira essência dos corpos. Essência que, quase entorpecida, só se revela na cumplicidade com o espírito, nos encontros a dois revestidos de clandestinidade. Como velhos amantes, sombra e espírito trocam confidências de alcova que só para eles fazem sentido.
A sombra enaltece aquilo que de mais genuíno o espírito tem, e ele, por sua vez, ensina-lhe os truques para se esgueirar entre a fantasia e a realidade. Fórmula humana de a alma viver em liberdade. Mesmo quando o corpo sobrevive a prazo numa existência moribunda, a sombra, sempre ela, guarda a réstia de dignidade que persiste mesmo nos corpos sem destino. Ou o lado oculto do Ser, que com ele coabita numa vivência equilibrada de querer e poder. O que se mostra nem sempre é o que se quer mas o que se pode, porque há o verso e o reverso do espelho, cada alma é assim. Ora transparente, ora opaca, balançado entre a fantasia e a realidade, entre a mentira e a verdade. Cada sombra carrega o seu corpo, criando a simbiose perfeita entre parasita e hospedeiro numa relação de sobrevivência.
E dessa forma os corpos vagueiam pelas sombras, como um só Ser, que são, na diversidade de um mundo cada vez mais igual.
 

18/02/2013

Histórias Sobre Fotografias: Corpos Que Conversam Corpos Que Se Descobrem


 
 
Eram sempre intensos, os diálogos que travava com o seu próprio corpo. Às vezes longos, durante horas, outras vezes apenas por breves instantes. Mas todos eles de um auto-conhecimento crescente e cada vez mais profundo do corpo que desabrochava em si. Como uma flor que se constituía para mais tarde gerar frutos, ia sendo cada vez menos menina e cada vez mais mulher. Tantas as transformações, tantas, naquele corpo em desarmonia com a mente. Conversavam conversas longas e aguerridas de confrontos brutais.

Todos os dias se surpreendia com uma nova descoberta, e um novo confronto, para resolver numa conversa de intensidade extrema. Profunda e esmagadora, a dilacerar a própria pele. E a deixar as marcas da batalha cravadas no rosto. Ó corpo que te apresentas com tanto mistério! São transformações e mais transformações para entender, a toda a hora. Ainda se houvesse uma lição que fosse aprendida e pronto, mas não, os mistérios pareciam não ter fim. Havia sempre um outro problema no dia seguinte. E outro no dia seguinte ao seguinte.

Só mais tarde, já mulher, percebeu que o corpo é para conhecer devagar. A conversar. Conversar até ao limite do entendimento, e do conhecimento. Que depois vem a serenidade.


15/02/2013

Histórias Sobre Fotografias : Metro do Porto [Casa da Música]

 
Observava atentamente a ladainha dos jovens que eram praticamente a totalidade dos passageiros, àquela hora do dia. E sonhava. Ele também já tinha tido aquela energia, aquela mesma disposição, aquele mesmo vigor e aquele mesmo jeito para catrapiscar as raparigas. Que agora lhe pareciam mais atrevidas, diga-se de passagem. Coisas dos tempos, os tempos mudam e mudam também os comportamentos. Mas, mal feitas as comparações, será que as coisas mudaram assim tanto? Os jovens continuam a ter sonhos, a fazer projectos para o futuro, a querer ser mais e melhor. Ele percebia-o pelas conversas de uns e de outros que ia ouvindo ao acaso. A questão é se esses sonhos se tornarão realidade, ou se esses projectos se concretizarão, ou ainda se um dia serão mais e melhores. Melhores pessoas, claro. Ele, melhor que ninguém, sabia quantos sonhos se podem perder ao longo de uma vida, e quantos projectos não passam disso mesmo. O quanto a vida pode moldar uma pessoa. Tinha-o sentido na pele.
Acabava de pagar a sua dividida para com a sociedade. Conversa esta mais hipócrita, tinha sofrido as consequências dos seus erros, isso sim. Tanto tinha ambicionado ser mais que se esquecera de ser melhor. Foi atrás do dinheiro fácil, encantou-se com as ostentações de luxo que passou a presenciar, e daí até ao mundo do crime foi apenas um passo. E por isso tinha passado os últimos vinte anos a ouvir dizer que tinha de pagar a sua dividida para com a sociedade, e que se tinha de reabilitar para essa mesma sociedade. Tretas, só tretas. A sociedade é que precisava ser reabilitada, e com urgência. Antes que fizesse com aqueles jovens o mesmo que tinha feito com ele. Agora que eles ainda traziam com eles os projectos dos bancos da faculdade e ainda se lembravam de ser antes de ter, talvez ainda fosse tempo.
E de repente, o metro parou. Embrenhado nas divagações nem tinha percebido que se aproximava da sua estação. Era ali que devia ficar, dali iria a pé até casa. O apartamento quase em ruinas no centro da sua invicta cidade do Porto, que tinha herdado dos pais. Pegou na mala onde guardava os seus poucos pertences e saiu, caminhando devagar. Estava velho, aos cinquenta e cinco anos.