Pela enésima vez surpreendia a
avó com os olhos pregados ao ecrã, completamente absorta, embrenhada nas
sensações daquela trama a preto e branco. Casablanca, era o nome do filme. Um
best-seller do século passado que a ela não dizia coisa nenhuma. Ternamente a
avó estendeu-lhe a mão fazendo-a aconchegar-se no seu regaço. Tinha
aproximadamente a sua idade quando tudo acontecera. Uma grande parte da alta
sociedade espanhola rumava ao norte de Africa, fugindo aos resquícios de uma
guerra civil que não se compadecia com ninguém. Nem mesmo com as famílias de
quem se movia nos altos meandros da política. Ou, especialmente, com elas. E
ela, recém-casada com um dos principais líderes da revolução, tornara-se um
alvo fácil.
Por circunstâncias, ou por um
qualquer contratempo, foi parar a Casablanca, onde já se estabelecia uma grande
percentagem da elite europeia. Sentindo os indícios de uma guerra que não
tardaria em começar, os senhores do poder punham os seus entes queridos a
salvo. Mas eram principalmente as madames francesas que ali se encontravam, as
mulheres e filhos dos magnatas espanhóis estabeleciam-se em territórios
periféricos, sensivelmente mais a norte. Desde que, há algumas décadas atrás,
os dois estados tinham decidido partilhar a supremacia sobre aquele reino de
sultões que Casablanca era um protetorado francês.
E assim, ela se viu sozinha no
meio de desconhecidos. Entre as mademoiselles francesas, que se exibiam em
clubes privados ostentando luxo e riqueza, e a população local, onde se
denotava uma certa pobreza, mas também, a autenticidade, o tradicionalismo,
alguma ingenuidade e muito encantamento. Deambulava pelo universo das emoções e
deixava que o corpo se embebesse em visões, cheiros e sabores, naquela terra
onde as mulheres escondiam o corpo até ao rosto. Entre a cidade cosmopolita e
os bairros tradicionais de mercados ao ar livre. Não passaram muitos dias até
que se encontrasse com Mahamed, o vendedor de fruta que lhe desvendou o sentir,
mesmo através do véu que passou a usar para melhor se entrosar com a população
local.
No início eram apenas os olhares,
num diálogo intenso que revelava mais que uma conversa de palavras, os dois,
frente a frente, um de cada lado da banca de venda. Absorviam sofregamente os
aromas dos frutos tropicais. Mas a inevitabilidade daquela paixão não permitiu
que se mantivessem tão longe quanto a distância da largura da banca de frutas,
e os prelúdios na suite de hotel, que o marido luxuosamente pagava, não se
fizeram esperar. E os passeios, escondidos, pelos monumentos e zonas
históricas, durante o dia, precederam noites escaldantes onde se desnudava de
todos os véus. Até que um dia a guerra acabou, e o célebre senhor da política,
agora instalado no poder, a resgatou para o seu papel de esposa. Acompanhante
de luxo nas altas reuniões político-sociais.
Avó, a minha mãe?... A tua mãe
nasceu alguns anos mais tarde. E a indústria cinematográfica fez Ingrid Bergman
e Humphrey Bogart criarem estes dois monstros sagrados, que alimentam as minhas
recordações.
1 comentário:
Obrigada eu!
Sem estas excelentes fotografias que tão bem transmitem emoções as palavras, com certeza, não fluiriam assim.
Beijo, meu Zé!
Enviar um comentário